A Queda
"Longe, o som da salvação parecia tocar. Mais perto, e se pudesse, veria a luz."
As penas foram tingidas de vermelho, rubra mancha esquecida por quem o via instantes depois de vê-lo, porque ninguém se lembra de um pássaro morto no asfalto, os sapatos ligeiros indicando que aquele seria o máximo funeral: encarnado fio no chão, a rota por onde passou o sangue na rasante, quando perdeu os sentidos e o corpo se desfez junto ao concreto , efêmero bicho esquecido agora também pelos céus.
Do buraco que o fizera deixar de ser, ninguém sabia. Podia ter sido criança com baladeira, porque crianças são os piores verdugos, chacinam sem piedade justificadas pela incerteza daquilo que são: incompletos ainda, pequenos monstros, mínimos generais. Mas uma baladeira faria tanto estrago? Não sabia, não conhecia nenhum pássaro marcado por baladeira antes dele mesmo, caso fosse essa a razão de sua finitude.
Os olhos vazios, como são os olhos de todas as aves, refletiam o poderoso ruído da rua , a face honesta dos sons que se espalhavam enquanto o bicho se desfazia lentamente. Já não existia: a morte fora instantânea. Mesmo assim, era testemunha do prodigioso existir daquela tarde, único a prestar atenção no que ia e vinha. No peito, nada.
Tardou e as luzes acenderam, um alarido fez duas ou três mulheres desviarem a vista por cima dos ombros, nada mais. Tardou mais ainda e a manada diminuía, até que a rua se tornou silenciosa, como dentro do peito do pássaro, marcado pela abertura violenta de suas penas. Longe, o som da salvação parecia tocar. Mais perto, e se pudesse, veria a luz.
— Que maldade — teria ouvido, e notado o acento sincero na voz de um homem acostumado com a maldade, mas que ali viu a si mesmo jogado no asfalto, quem sabe. Talvez.
— O que foi aí? É cachorro?
— Passarinho.
E teria entendido no silêncio daqueles homens o elogio fúnebre, sua última oração. Com as mãos de luvas, o homem tomou o pássaro e o lançou com um cuidado deliberado — como se morto ainda pudesse sentir nova queda — na caçamba do caminhão de lixo, as penas esmagadas, o coração aberto, o bico curvo, os olhos vazios, tudo esmagado. Finito. Não saiu da cabeça do homem a vista do pássaro que manchava de sangue o asfalto.
Na penumbra que o aguardava em casa, antes do amanhecer, correu os olhos pelo quarto vazio. Cheio ainda de coisas, é verdade, as roupas e sapatos, tudo estava ali, como se ela tivesse ido dar um passeio. Não era isso, ele sabia, adivinhou e se compreendeu irmão do pássaro, ele também vazio, um buraco em torno do peito: Maria fora embora e ele não a encontraria de novo, ave rara violentada pelo imenso peso de existir, o coração anuviado e a incerteza de si mesma.
Sentou-se na cama, do lado que ela costumava dormir, não se importou em trocar a roupa e o cheiro do lixo, que já era impregnado em suas narinas como dele mesmo. Alisou a cama, os olhos no travesseiro intocado, fios de cabelo preto ainda soltos aqui e ali, lembranças, oferendas, pequenos presentes que ela deixara como uma oferta de paz.
Os primeiros raios de luz beirando as frestas da casa, uma casa limpa, a despeito do cheiro que ele sentia em si mesmo, que era mais costume que cheiro, ela dizia. As batidas na porta o alertaram, não tinha dormido mas estava entorpecido pelo silêncio no qual se detivera. Era seu Antônio, vigia do prédio abandonado da Receita, que há décadas não servia pra nada, mas que ele precisava cuidar para que ninguém convertesse em domicílio (ele achava que não faria mal dividir o prédio em habitações, mas que seja, gostava de ter um emprego).
Como se tivesse engolido o pássaro morto, que ressurgia vivo em seu estômago, peito e garganta, fez um esforço para entender o que ouvia, previsível que fosse.
— Eu vim lhe chamar, o senhor sabe, ambulância não adiantava mais… Mas vim aqui pro senhor não ficar sabendo por último, ou pela TV, mas por mim. Eu que achei ela, achei que era direito vir contar…
Deixou-se orientar pelos passos do velho vigia, e encontrou Maria na primeira luz do amanhecer, a mancha rubra se espalhava pelo concreto e fazia um caminho até o canto da calçada, onde ele se sentou para não cair, quando sentiu que lhe faltavam pernas.
Era linda, linda, linda a Maria, mesmo com tanto vermelho, o corpo num ângulo impossível e ainda assim, tão linda com os olhos abertos atravessando os olhos dele, como se visse sua alma, o olhar de um pássaro, a queda esperada. Não ia voltar e ele sabia, sempre soubera.
— Maria.
Foi tudo que ele conseguiu dizer. O nome de Maria ficou preso em sua boca e, junto ao pássaro, escapou para o peito onde se manteve. Onde ele poderia guardá-la.
— Maria.
Se você quer conhecer outros contos que escrevo, dê uma olhada na minha página do Medium ou leia A Urdidura da Matéria, meu livro de contos que está disponível no Kindle Unlimited.


